sábado, 6 de novembro de 2010

"Modus operandis" em História: uma reflexão sobre possibilidades de práticas de pesquisa.

Um trabalho de pesquisa parece implicar uma reflexão a priori sobre suas possibilidades, uma reflexão durante sua execução, pensar sobre o trabalho que tem sido feito, e uma reflexão a posteriori, sobre os resultados obtidos. Isto quer dizer que todo seu desenvolvimento, inserido nele o projeto a ser executado, sua execução e seu resultado nos exige um olhar que não deve somente ser direcionado para o objeto que é base dela, mas também, como nos alerta Certeau (- com seu metafórico espelho), um olhar sobre nós mesmos como pesquisadores, o “espaço que ocupamos” enquanto tal e nossa prática. Em outras palavras, faz-se importante pensar no modus operandis que nos “faz ser” aquilo que almejamos para realizar um projeto. Assim sendo, tão importante quanto pensar de imediato o objeto, produto de verificação, seria também refletir em quais possibilidades de tratamento sobre o qual podemos aplicá-lo, iniciando tal aplicabilidade, parece-nos importante, em nós mesmos, pesquisadores de uma área determinada, com procedimentos determinados, objetos determinados. Isto significa que todo processo de pesquisa exigiria de seu pesquisador clarificar o “campo de guerra” que se propõe adentrar e o comportamento “adequado” para explorá-lo da maneira mais proveitosa. Uma espécie de estratégia de ação.
Propomos aqui discutir sucintamente a importância do modus operandis da pesquisa que pode antes mesmo de se colocar em prática vir a determinar seu trabalho e clarificar seu operador. Refletir sobre suas possibilidades e sobre uma espécie de “eu pesquisador” que possui características e comportamento, ou seja, uma espécie de “eu situado”, historiador, que está atrelado a um objeto. Um “sujeito intelectual” precavido que tem por grande receio se perder em um tipo de “esquizofrenia teórica e metodológica”, em virtude da complexidade de aspectos que se apresentam ao campo da pesquisa, e que, portanto, se vê comprometido com essa determinação de si pelo pensamento teórico-metodológico e de seu trabalho.
A pesquisa tem há algum tempo se transformado de certa forma quase que em um “drama” para alguns pesquisadores e isto não quer dizer que no passado mais distante ela vivia situações amenas, mas o que se percebe é que seu momento atual é singular. Isto se inicia a partir do pós-guerra quando o campo das Ciências Humanas se vê diante de um turbilhão de contestações teóricas, metodológicas, políticas, culturais, econômicas etc., em parte lançada pela Escola dos Annales. A ideologia dominante naquele período que polarizava o universo do campo do conhecimento em de um lado o pensamento de esquerda e do outro o de direita como avaliador do campo social em geral enfrentou uma crítica rigorosa, embora tal polarização ainda exista de certa maneira. O que se verifica na atualidade é que aquele universo é muito mais amplo, isto em relação a todas as ciências e sobretudo às humanas, e mais especificamente, aqui o que nos interessa, à História: “Mais ou menos na última geração, o universo dos historiadores se expandiu a uma velocidade vertiginosa” (BURKE, P. ABERTURA: A NOVA HISTÓRIA, SEU PASSADO E SEU FUTURO. In A ESCRITA DA HISTÓRIA. São Paulo: UNESP, tradução de Magda Lopes, 1992, p. 7).
Tal amplidão reorganizaria os trabalhos de pesquisa em história levando-a a um “necessário” remanejamento em que suas divisões ou determinações surgiriam fatalmente relacionadas ao “objeto” ou “produto” visado. Travou-se uma procura epistemológica geral por determinações, categorias, especificações, gêneros etc.:
A história nacional, dominante no século dezenove, atualmente tem de competir como historia mundial e a história regional (antes deixada a cargo de “antiquários” amadores para conseguir atenção. Há muitos campos novos, freqüentemente patrocinados por publicações especializadas. A história social, por exemplo, tornou-se independente da história econômica apenas para se fragmentar, como alguma nova nação, em demografia histórica, história do trabalho, história urbana, história rural e assim por diante (idem, ps. 7-8).

Assim, fazendo uso da metáfora de Koyré, de um mundo de certo modo fechado, cerrado entre aquelas duas polarizações, surgiria com sua “implosão” um universo infinito de possibilidades. Uma nova condição que revela uma contraditória “crise” de fato que leva a uma revigorarização, uma crescente retomada do trabalho de pesquisa em história: “Entretanto, o preço de tal expansão é uma espécie de crise de identidade (idem)”. Uma busca pelo reconhecimento e definição; estava aberta a chamada Nova Histoire que entre muitas qualidades se atribuiria o direito da “interdisciplinariedade”, ou melhor, do cotejamento entre campos de saberes e consequentemente da complexidade.
Entre parênteses. No caso da educação ou da história da educação não poderia ser diferente. O campo que nascia com a nova história reclamaria mais espaço entre as chamadas história social, história cultural, história dos costumes e por aí a fora. E nessa expansão não faltariam pesquisas para compreender o universo educativo, formação de professores (NÓVOA), material didático (CHARTIER, CHOPPIN, BICCAS), a identidade dos educadores e dos educandos (DEWEY), os espaços educativos, a relação educativa (CARVALHO, Marta), ou mesmo as contestações, “o que é educação”, quais seus “espaços”, “quem educa quem” (ABRAMOVICH), “professores para quê? (GUSDORF) e por aí em diante. Enfim, a educação não sairia ilesa dessa infinitude que se apresentaria à pesquisa.
Complexidades e possibilidades infinitas à vista exigiriam certos cuidados. Burke em sua obra A ESCRITA DA HISTÓRIA (1992) alertaria sobre o problema de tal expansão: “Neste universo que se expande e se fragmenta, há uma necessidade crescente de orientação” (idem, p. 9). Uma expansão que requeriria todo cuidado por parte do pesquisador em meio à multiplicidade de opções. Nessa atenção redobrada para a qual surgem metaforicamente instigantes e torturantes “objetos de desejos”, especificamente, objetos de pesquisa, métodos, práticas, teorias, poderiam entrar em xeque por meio de um descuido o valor e a função do pesquisador e de seu trabalho por isso a busca pela “orientação”, pelos sentidos, significações ( - o  que é pesquisa, o que é um pesquisador, que sujeito sou e quem devo ser diante de meu objeto a ser verificado, que método se deve privilegiar, como se pode observar, refletir, reunir, separar os aspectos de um trabalho de estudo, isto é, quais alternativas e quais critérios de seleção se deve dar atenção). Em resumo, quais as especificidades do modus operandis mais adequado a ser utilizado.
Todas essas preocupações parecem fazer parte do processo das práticas de pesquisa. Este foi de um modo ou de outro um tema muito recorrente na disciplina História da Educação e Historiografia[1] (1º semestre de 2010) ministrada pela professora Maurilane Biccas. É possível verificar sua latente preocupação com as práticas desenvolvidas pelos pesquisadores. E neste sentido, seria interessante pensar um pouco sobre esse “universo”, que se apresenta às vezes turbulento, situado em parte à minha pessoal preocupação de pesquisador utilizando parte da bibliografia discutida durante o curso. Conjunto de textos que entre outros assuntos tratava de alguns pontos e problemas da pesquisa em história e historiografia, como, por exemplo, a prática historiográfica (Certeau, Vidal, Carvalho, Biccas), determinações da história e do trabalho historiográfico (Burke), o objeto de pesquisa (Chartier, Certeau, Choppin), o historiador (de relance Bloch), métodos historiográficos (Choppin, Burke).
Deste modo, tendo por base aquelas preocupações, parece necessário discutir o significado de certas concepções, como, pesquisador, objeto de pesquisa e método, acerca de tais práticas que compreendemos ser o princípio da realização de um projeto, algumas vezes remetendo à experiência particular que venho desempenhando no intuito de “orientar”, conforme Burke, um meio operatório para o trabalho em história e historiografia.

Pesquisador
Cabe-nos então nos perguntar de saída o que é um pesquisador? Não no sentido de encontrar respostas determinantes sobre tal posicionamento, mas traçar algumas observações gerais que possam nos levar a enxergar no horizonte uma imagem que nos servirá para clarificá-lo. Certamente Michel de Certeau seria um importante pensador a nos dar alguns sinais de tal entendimento:

Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa entendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação. Esta marca é indelével. No discurso onde enceno as questões globais, ela terá a forma do idiotismo: meu patoá representa minha relação com um lugar (CERTEAU, M. A Operação Historiográfica. In A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, s.d., Capit. II, tradução de Maria de Lourdes Menezes, p. 65).

Para Certeau o “ofício” de um pesquisador independente do campo de atuação inicia por “ocupar um lugar”. Um “espaço ocupado” de onde se fala, um “mirante” em meio ao próprio universo de fala, ou seja, um lugar de onde se observa sendo que tal lugar também já é considerado na observação. Um meio de onde o sujeito fita o além e também se fita neste ato mirador, como, em uma tarde de verão ao observar de Montmartre a Paris ao sopé, sendo que a própria região mirante faz parte da própria cidade revelando uma relação do observador com o lugar, com o lugar que se observa de longe e com o lugar a partir do qual é ocupado para observar. Uma relação estreita entre o sujeito e o espaço que ocupa e o objeto observado.
Desta forma, ocupar um lugar é ao mesmo tempo determiná-lo como parte do sujeito e determinar este como ocupante daquele por meio da relação estabelecida entre ambos. Uma determinação que se revela através de sua materialização, por definições de aspectos que envolvem a pesquisa: o pesquisador, sua “ciência”, seu material, método etc.
Em outras palavras, em relação à nossa discussão, sou “ocupante” de um espaço qualificado e isto já é uma determinação de mim como historiador em um lugar, com minhas experiências adquiridas; tal “ocupação” é demarcada por mim e por aquilo que “carrego”, tanto em relação às experiências particulares quanto às gerais. Ou melhor, tanto minhas experiências de sujeito singular, com minha história social privada, quanto minhas experiências mais genéricas, como, por exemplo, minha formação intelectual em história e filosofia. Dessa combinação eu me situo em um “contexto sócio-cultural”, demarcado em parte pelo meu ofício de historiador.
Tudo isto contribui com o acabamento do “sujeito situado” que sou ou que pretendo ser para realizar um projeto. E esse conjunto se manifesta nas ideias que carrego, eu sujeito que pesquisa no campo da história com operações adequadas relacionadas a tal qualidade, e as quais utilizo para exercer uma prática intelectual: “(...) o gesto que liga as “idéias” aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador com um lugar” (idem).
Tal “gesto” é um movimento, ou seja, uma “ação”, ou “operação”. Assim, minha ação precisa revelar as características da determinação: se pesquisador em história, a prática deve revelar suas características. E esta, como nos aponta Certeau, é “uma operação histórica” que se combina com “um lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita” (idem). Este parece ser o tripé de que se serve o teórico francês para pensar o “ofício”. Um sujeito intelectual, pesquisador de história que deve carregar consigo um discurso teórico, metodológico, em outras palavras, “operatório”, que revele uma prática de “ofício”.
Parece que nesse ínterim tal pesquisador deve pensar seu objeto de trabalho e pensar como está pensando-o, se de modo “adequado”; operá-lo e refletir sobre o “ato de operar” que está sendo utilizado para saber se ele é reconhecível, ao menos para aquele que o constrói[2].
É possível verificar com isto que um pesquisador parece ser aquele que carrega consigo uma “qualidade” que será aplicada nele mesmo e no seu produto de trabalho, no objeto a ser pesquisado.
Do sujeito que opera ao objeto operado o pesquisador deve levar em consideração tanto sua prática quanto o produto com o qual irá trabalhar. Assim sendo, é imprescindível nesta reflexão que temos desenvolvido fazer algumas indagações sobre a consistência deste “material”.

Objeto de pesquisa
O que se poderia tomar como objeto de pesquisa? Que qualidades poderíamos atribuí-lo? Em outras palavras, como determiná-lo? Sem querer restringi-lo a uma concepção puramente objetiva, traçaremos algumas observações acerca das possibilidades daquilo que se denomina de “objeto de pesquisa” em história.
Como vimos acima, muita coisa se modificou no campo da pesquisa ao longo dos anos a partir do pós-guerra. Mas nos parece que algumas mudanças já estavam em andamento já desde o final do século XIX pelas mãos ou ideias de historiadores como Burckhardt e Huizinga ao tratar até então do “incomum”, dos “aspectos culturais do comportamento humano”, na “operação histórica” em oposição à tradicional história do Estado ou Diplomática.
Tal modo de tratar os “fatos históricos” se expandiria com a contribuição na sequência, na virada do século, de Lebfevre e Marc Bloch[3] com suas pesquisas no campo sócio-cultural. Ambos lançariam mão da emergência de se pensar a história de outro modo. E é a partir da perspectiva deste último, com sua tese de que a história se faz através dos “vestígios” ou “fragmentos” por meio dos “testemunhos” que pretendemos iniciar nossa discussão, pensar nosso objeto.
Parece que para Bloch o passado só é “produto” para a historiografia por meio dos testemunhos, ou seja, dos fragmentos relatados:
Das eras que nos precederam, só poderíamos [portanto] falar segundo testemunhas. Estamos a esse respeito, na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu; do físico, que, retido no quarto pela gripe, só conhecesse os resultados de suas experiências graças ao relatório de um funcionário de laboratório. Em suma, em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente o “indireto” (BLOCH, M. A Observação Histórica. In Apologia da História. Rio de Janeiro: Zahae, 2001, Capítulo II, p. 69).

Essa relação “indireta” do historiador com seu objeto de trabalho, o fato no passado, ocorre porque há um distanciamento entre ele e o ocorrido. Ele não viveu diretamente aquilo que procura saber que só o tem acesso por intermédio de outrem, pelos relatos que o são apresentados como “fragmentos” para a formação de um todo. E isto valeria também para o tempo vivido que por sua complexidade de apreensão impossibilitaria a um só abarcar as várias situações presenciadas:
Um comandante de exército, suponhamos, acaba de obter uma vitória. Imediatamente, começa, de punho próprio , a escrever seu relato. Concebeu o plano de batalha. Dirigiu-a. Graças à medíocre extensão do terreno [(pois decididos a colocar todos os ornatos em nosso jogo, imaginamos um confronto dos tempos antigos, concentrado num espaço pequeno)], ele pôde ver a refrega quase toda a se desenrolar sobre seus olhos. Entretanto, não duvidemos: sobre mais de um episódio essencial lhe será forçoso referir-se aos relatórios de seus tenentes (idem).

E por mais que o espaço pareça pequeno, ou seja, que o objeto contenha alguma simplicidade, dentro dessa aparente “pequenez” há uma complexibilidade que exige a contribuição de muitos.
Muito similar à ideia de François Dosse, a história se faria através das “migalhas”, dos fragmentos por meio de relatos, quer seja oral, quer seja verbal, quer seja documental; enfim, um “vestígio” em forma de significação deixado em algum momento no passado que é retomado no presente para adquirir “sentido”, “(...) são realidades que nós próprios (historiadores) captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal” (idem, p. 72). Desta forma, o dado que passou, que é captado por meio de fragmentos para a formação de algo que tem “sentido”, é reorganizado através de um trabalho transformador: “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (idem, p. 75).
Isto parece nos remeter à tese de Michel de Certeau a qual, em relação ao passado que é retomado e “transformado” e que ao se realizar já se torna também outro passado e “produto” para outro presente, trata sobre a retomada do “morto”, o fato consumado, que é transformado em “vivo”, para morrer quando tiver cumprido sua trajetória, isto é, quando tiver já sido pensado no presente.
A história como “produto” seria aquilo que já está morto, pelo tempo e pela sua própria trajetória existencial: “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente” (VIDAL, Diana G. MICHEL DE CERTEAU E A DIFÍCIAL ARTE DE SE FAZER HISTÓRIA DAS PRÁTICAS. In Pensadores Sociais e História da Educação. S.C.: Autêntica. Organização FARIA filho, Luciano M. de. S.d., pg. 257).
Esta discussão nos leva consequentemente a citar Burke e seu conceito de “cultura material”, sobretudo se pensarmos nas correspondências produzidas por sujeitos, que alias é objeto de nossa pesquisa de pós-graduação, que seriam espécie de vestígios “mortos” deixados pelos homens nas quais são gravadas suas impressões e significados referentes às suas vidas privadas, mas que podem se relacionar ou se inserirem em um contexto maior.
Os sujeitos ao produzirem algo no presente que se “torna morto” logo em seguida deixam sinais de sua presença, quer sejam nos objetos, quer sejam nos espaços; gravam suas marcas por meio de significados tornando-os “produtos historiográficos”, isto é, de uso para a historiografia. E no caso das missivas, elas possuem em potencialidade “fragmentos de histórias” ou “vestígios do vivido” que está morto de um período já acabado, porém com potencialidades para o “reavivamento”. Elas auxiliam mesmo em sua aparente “pequenez”, “migalhas”, a dar sentidos, preencher lacunas, de um tempo obscuro visto que trazem em si revelações de um espaço “invisível”, do universo privado, mas que podem contribuir com a compreensão do visível, do público, de um tempo que está lá atrás, mas que no presente está ainda por revelar, revelar novas “situações” que nos ajuda a compreendê-lo bem como seu passado.
Em outras palavras, as missivas, pensando nas que vêm sendo retomadas por mim sob a perspectiva pedagógica caiopradiana de caráter político, auxiliam-nos a compreender no presente que a educação pode se realizar através de varias vias, como, por exemplo, pela correspondência, e também nos faz compreender as articulações político-educativas de um passado ideológico brasileiro, em meio a um conflito político.

Método
Outro ponto importante do modus operandis seria o meio pelo qual se realiza a pesquisa, ou seja, métodos, os quais possibilitam seu manejamento completo desde o estabelecimento de sua proposta até sua finalização. Já nos alertava indiretamente Burke em sua obra O que é História da Cultura? (2005) a importância dos sinais e códigos deixados pelos pesquisadores do caminho por eles percorridos. Uma determinação daquilo que estava sendo executado à maneira de um “discurso próprio”. O que de certa forma ele também o faz naquela obra, percorre o caminho deixado pelos historiadores da cultura e ao mesmo tempo vai sinalizando para seus leitores que o que ele faz é uma “história da história da cultura”. Seria como dar uma identidade aquilo que se produz. Diz ele através das palavras de Sartre: “(...) embora a história cultural não tenha essência ela possui uma história própria” (BURKE, 2005, p. 10). É possível que essa contraditoriedade, da “falta” de essência já fosse explicada pela própria existência de sua história. É possível que sua essência fosse justamente seu caráter histórico, sobre tudo aquilo que pudesse de alguma forma possuir “sentido” pelas mãos do homem e passível de ser “historicisado”.
Desta forma, parece-nos que o método já se inicia pelas próprias escolhas dos sinais que se quer deixar propositalmente para sinalizar que o que se está fazendo é história e não outra ciência. E mais, uma história específica, determinada, se econômica, se cultural e que tipo de cultura, se social e qual aspecto dele, se educacional e sobre qual de suas partes. Isto nos remete a Certeau e sua concepção de “demarcação de espaço”, tratada linhas acima, do lugar de onde se fala e sobre qual se fala. Neste aspecto, o método parece se relacionar diretamente ao sujeito e ao objeto com o qual ele trabalha através do movimento de demarcação do campo de atuação pelo pesquisador ou como ele defendia, do “espaço”.
Essa concepção de método parece ser no geral “práticas” para desenvolver aquilo que existe enquanto proposta de um projeto sendo que esta de saída já passa pelo crivo daquela. Uma espécie de “transformação” do outro e de si, ou como diz Certeau uma “técnica” que tem a capacidade de “transformar”, dar um “novo sentido”. Esse deslocamento contribuiria com o estatuto de cientificidade do trabalho histórico: “”Um trabalho é “científico” quando opera uma redistribuição do espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo estabelecimento das fontes” – quer dizer por uma ação instauradora e por técnicas transformadoras” (idem, p. 83). A metodologia pela sua habilidade prática se enquadraria nessa cientificidade que é “objetiva”, determinações que organizam, separam, aproximam.
E aqui é possível, a titulo de ensaio como ilustração, pensar em um esquema, modo de trabalho ou método prático, em parte relacionado à pesquisa que tenho desenvolvido sobre as correspondências de cunho educativo de Caio Prado Jr. O intuito é apenas sinalizar para possibilidades para poder visualizar o que nelas podem viabilizar a prática, aplicação de um método a um “produto”. De outra forma, como até o momento fizemos uso de formulações teóricas para pensar uma concepção de modus operandis, acreditamos neste ínterim ser importante uma aproximação sua em relação às formulações mais práticas.
Neste intento parece importante organizar o “campo de batalha”, (o qual citamos no início desta reflexão) o espaço histórico em atuaremos para “visualizá-lo”. E para isto cabe uma espécie de “plano de ação”, propostas que pretendem se não serem postas totalmente em execução ao menos pontos de partida para os quais sugerimos práticas de caracteres analíticos e analógicos (análises e analogias). Apresentamos em seguida a organização de tais pontos, no intuito de demonstrar a possibilitar de um “discurso específico”, em história e historiografia da educação.
A proposta do plano é dividido em duas partes:
1ª) Questões de orientação geral: usos conceituais para delimitação da pesquisa, através da qual se pretende demarcar um campo de discussão, no caso, história e historiografia da educação por intermédio de obras de história e sociologia da cultura e da educação.
►BURKE: conceito de “cultura material” – historiografia da educação através de cartas.
►CERTEAU: conceito de “vivo do morto” – escavar a história – e “táticas sociais” – as cartas como “subversão da ordem política autoritária vigente no período ou o “drible” do Estado autoritário de censura no Brasil para discutir questões sociais.
►BLOCH: o “invisível por trás do visível” – as cartas como “ação” ou articulação do universo privado, atividade “não-não visível” que pode escapar ao ato de censura, perseguição política, para contestar a ordem capitalista vigente por meio da educação dos conceitos marxistas.
►BOURDIEU: conceito de “campus”: o espaço de discussão e educação criado pela troca de correspondência que tinha por finalidade transmitir, instruir, dialogar sobre questões político-marxistas.

E 2ª) Questões de orientação especifica – visão sobre o material da pesquisa, as correspondências. Possíveis apropriações e direções de pesquisa no manuseio do material pela adaptação do “método funcional” de Alain Choppin (usado por ele para organizar sua leitura do material didático na França) no intuito de dar um “sentido” ao produto com qual venho trabalhando. Isto é, retomando Certeau, acomodando-o em um “espaço” que nos parece conter aspectos novos dos até então tratados.
►Função referencial: suportes de ideias “político-educativas” de caráter marxista.
►Função instrumental: divulgação e esclarecimentos de diálogos de cunho marxista, veículo de contato político e político-educativo.
►Função ideológica e cultural: transmissão de ideais e conceitos marxistas.
►Função documental: mapeamento (entre as décadas de 1930 e 1960) do contexto educativo caiopradiano sensível aos âmbitos histórico, social e cultural de caracteres marxistas no Brasil.

Como podemos verificar é muito complexo o universo da pesquisa. Pode ser uma via com direções de caminhos certeiros, mas que também pode conter entroncamentos, curvas, caminhos que levam ao nada, que findam sem aviso prévio, e circular como uma rotatória que nos faz girar sem chegar ao começo ou ao fim.
Ou seja, uma multiplicidade de opções que nos aparecem, muitas vezes nos cortejam, nos conquistam e nos iludem como que em uma sala de espelhos que entre os perfeitos e os imperfeitos nos fazem ver aquilo que, ou existe apenas espelhado nele, uma figura disforme do real, ou o espelhamento de uma imagem do real. Imagens variadas que nos confundem nas escolhas e que num instante quase que de “neurose” nos faz vacilar. Neste caso, ela pode se tornar o grande receio de qualquer pesquisador: não concluir aquilo que se propôs, embora qualquer conclusão seja momentânea.
Parece-nos que uma boa alternativa à “segurança” ainda seja pensar o objeto e pensar como está pensando-o. Um olhar mirador que fita e se fita como a relação de Certeau e seu metafórico “espelho”.



Referência bibliográfica
BLOCH, M. APOLOGIA DA HISTÓRIA. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, Tradução: André Telles.
BURKE, P. A ESCOLA DOS ANNALES. São Paulo: UNESP, 1997, Tradução: Nilo Odalia.
Idem. O QUE É HISTÓRIA CULTURAL? Rio de Janeiro: Zahar, 2008, Tradução: Sergio Góes de Paulo, 2ª. Edição.
Idem. A ESCRITA DA HISTÓRIA, Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, Tradução: Magda Lopes.
CERTEAU, M. A ESCRITA DA HISTÓRIA. Rio de Janeiro: FORENSE, s.d., Tradução: Maria de Lourdes Menezes.

Bibliografia
ABRAMOVICH, F. QUEM EDUCA QUEM? São Paulo: Circulo do livro, 1985.
BICCAS, Maurilane de S. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: ARGUMENTUM, 2008.
BOURDIEU, P. A DISTINÇÃO. São Paulo: Zouk e EDUSP, 2008.
CHARTIER. R. A ORDEM DOS LIVROS. Brasília: UNB, s.d., Tradução: Mary Del Priore.
CHOPPIN, A. História do livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In Revista Educação e Pesquisa. São Paulo: EDUSP, v. 30, nº 3, set./dez. 2004.
DOSSE, F. A HISTÓRIA EM MIGALHAS. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, 2ª impressão, Tradução: Dulce A. Silva Ramos.
GALVÃO, Ana Maria de O. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte: Autêntica. 2001.


JC

[1] Monografia escrita para a conclusão da disciplina de pósgraduação História da Educação e Historiografia, monistrada pela Profª Maurilane Biccas, FE-USP, 2010.
[2] Como verificamos em nosso curso, recorrendo a CHARTIER em seu texto Práticas da Leitura (1996), o autor de um discurso implica em seu texto uma determinação, uma organização singular, mas que não se realiza totalmente à medida que sua apropriação pelo leitor implicarão outras demarcações, sem falar na interferência do próprio processo de editoração da obra. Isto não significa que mesmo sob essas condições o autor não esteja agindo conscientemente para construir um caminho que será recomendado aos leitores, um caminho que faça com que eles o reconheça como produtor do trabalho.
[3] Sobre o assunto ver BURKE, P. O que é História Cultural? São Paulo: Zahar, 2005.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

É o professor que ensina ou é o aluno que aprende?



A lógica do ensinar e aprender nos dias atuais ou como diz Nóvoa na “Educação Nova” parece cada vez mais perder um pouco o seu sentido, ou melhor, recoloca-a em um novo sentido, visto que a própria concepção de conhecimento parece passar por modificações:
A ciência é, e continua a ser, uma aventura. A verdade da ciência não está unicamente na capitalização das verdades adquiridas, na verificação das teorias conhecidas. Está no caráter aberto da aventura que permite, melhor dizendo, que hoje exige a contestação das suas próprias estruturas de pensamento. Bronouski dizia que o conceito da ciência não é nem absoluto nem eterno. Talvez estejamos num momento crítico em que o próprio conceito de ciência está a modificar-se (MORIN, E. Ciência com consciência. Fayard: Points, 1990, pg. 33).
Porém, o que ela revela em parte, e que não se pode desconsiderar, é uma preocupação de se compreender a identidade dos envolvidos, iniciando pela escola, passando pelo educador que na atualidade encontra novos desafios que o envolve enquanto profissional, bem como sua prática pedagógica e seus fins. Neste sentido, Nóvoa diz que:
É preciso abandonar sonhos antigos de uma escola que seria capaz, por si só, de transformar a sociedade. Mas é preciso também fazer a crítica das teses que procuram erigir os professores em bodes expiatórios de todos os males sociais. A nova inserção da escola na sociedade tem de fazer-se em termos mais medidos, mais comedidos, num certo sentido mais modestos. A escola faz parte de uma rede institucional (...) (NÓVOA, A. Novas respostas para um velho problema. In Caderno de formação. São Paulo: UNESP, 2010, p. 33).
Percebemos que a crítica ao conhecimento leva a repensar o universo escolar sob o qual aquele contestamento seria a base de sua estruturação, ou seja, uma vez questionada a própria concepção de conhecimento surgiria a partir dela uma necessidade de se repensar a escola e tudo aquilo que a envolve, sobretudo as identidades e a relação do educador e educando.
Com essa revista, o ponto central de ligamento, o saber, entre professor e aluno fica deslocado demonstrando sua complexidade e multiplicidade sem qualquer possibilidade de pré-determinação ou redução daqueles que diante de tal saber venham desempenhar papéis.
Essa mobilidade por outro lado não quer dizer que o saber, que se encontra em meio a essa complexidade, esteja perdido em um universo vazio de sentidos ou em espaços de contradições que se negam, mas, ao contrário, que ele possui um caráter dinâmico que é trabalhado através de uma relação que se inverte constantemente entre seus interlocutores, aluno e professor, movendo-os ora para um lado, ora para o outro; ou melhor, uma comunhão dialética que revela que aquele que ensina é o mesmo que aprende e vice-versa.
Desta forma, parece certa tendência buscar cada vez mais uma identidade dessa relação que para muitos fôra perdida, sobretudo a partir do “período Medieval”, no qual se buscou congelar a concepção de mestre como algo meritamente e arrogantemente como aquele que possui o conhecimento, que se encontra em um nível superior em relação ao educando. De certa forma, essa relação sacerdócia ou messiânica, isto é, o mestre é aquele que possui o caminho da liberdade, acabou sendo cultuada e reproduzida por nossa tradição educacional ocidental inclusive em alguns casos até nossos dias atuais.
Essa busca pela compreensão dos papéis dos atores no processo educativo levou muitos dos pensadores educacionais a questionar não só tais papéis como o próprio espaço onde seria seu cenário. Poderíamos pensar aqui em Rousseau que, ainda no século XVIII, procurava descentralizar tais pontos valorizando uma pedagogia social feita pela sociedade por meio de uma liberdade de vivência.
Na contemporaneidade, percebemos que os autores que tratam de tais assuntos se debruçam sobre a revisão desses temas buscando encontrar sentidos mais claros para eles, podemos citar Gusdorf, Bakhtin, Morin, Nóvoa entre outros. E neste aspecto, atualmente, há certa tendência em aceitar o conhecimento como algo existente em todas as partes, não só entre os muros das escolas e universidades.
Nessa busca tem sido valorizada entre outras a visão socrática do processo pedagógico. Gusdorf em sua obra intitulada “Professores para quê?” (1970) nos faz repensar polemicamente sobre quais seriam os papéis dos atores na pedagogia, bem como qual o entendimento de seus objetos de trabalho.
Por um lado, a parte das polêmicas gusdorfianas, ele nos traz aquela relação pedagógica que Sócrates estabelecia com seus “alunos”; relação esta que não possuía lugar definido, mas que por meio de um diálogo ia “encontrando” ou “parindo” conhecimentos, sentidos. Por outro, essa visão não nos faria acreditar que o trabalho pedagógico não teria que ter uma preparação ensaística antes de colocá-lo em prática, pelo contrário, a partir de um esquema preparatório ou de um veio referencial ele poderia ser desenvolvido através de um direcionamento: da busca de sentidos. O educador neste caso teria como papel mais claro o de orientador, embora sua orientação dependeria das respostas de seu orientando, ou seja, ele seria estimulado por aquele que estivesse dialogando consigo ou por aquele para o qual ele, professor,  deveria estimular. Seria uma troca incessante de estímulo.
Sob esta visão parece que nosso questionamento modestamente encontra uma resposta para a pergunta que aqui nos move a pensar sobre a atividade pedagógica. Nela, a concepção de ensino é deslocada em todo momento procurando se acomodar conforme a necessidade do momento. O ponto central da relação seria o estímulo que sem o qual não seria possível continuar o debate educativo. Sendo assim, haveria uma atividade dinâmica: aquele que “ensina” é o mesmo que “aprende” a complexidade de uma concepção de conhecimento não menos dinâmica sem que isto signifique que seus atores estejam perdidos no vazio. Sob esta prática o sentido maior que é encontrar conhecimentos, dar sentidos às coisas, parece continuar latente.
JC.


Uma pequena reflexão sobre a pré-escola no Brasil.



A Pré-Escola como parte integrante do ensino básico obrigatório se configura segundo a LDB, o que podemos verificar no artigo 21 da Lei 12.013 de 2009, “(...) educação básica, formada pela educação infantil (...)”, como uma fase importante para as primeiras formações do cidadão de quatro a cinco anos. Ela que visa uma preparação para a entrada no ciclo da alfabetização é um trabalho “psico-pedagógico” que envolve tanto o desenvolvimento motor quanto psicológico da criança, como ensaio à entrada no universo das significações, simbologias do “jogo” lingüístico. Deveria ser um momento de liberdade durante o qual a criança vive suas possibilidades naturais de desenvolvimento levando em consideração sua capacidade particular de entrar naquele universo, sem esquecer dos estímulos adequados para tal inclusão.
No Brasil já podemos verificar que este tema tem sido valorizado pela sua representatividade na formação do sujeito. Ele tem, por exemplo, sido objeto de pesquisa pelo Laboratório de Observação e Estudos Descritivos da UNICAMP onde é avaliado o processo pedagógico em tal esfera. Em parceira com pré-escolas da região a instituição procura acompanhar os trabalhos que estão sendo desenvolvidos que envolvem tanto a criança quanto o educador. Podemos também pensar nos trabalhos de escolas de aplicação, como é o caso da Escola de Aplicação na USP que procura ao mesmo tempo oferecer a educação aos filhos de funcionários e alunos conciliados com trabalhos de pesquisa para avaliar a qualidade dos resultados visando suas especificidades.
Por um lado, mais do que um momento de ensino das letras e dos números o projeto deveria obrigatoriamente ser diferenciado do ensino fundamental quando a criança aos seis anos de idade é inserida no efetivo trabalho pedagógico. Ela seria uma “(...) primeira etapa da Educação Básica, sem antecipar a escolarização do ensino fundamental” (GODOI, s.d.).
Assim, o período em questão se configuraria mais como um momento de experiência no qual a criança, respeitados seus limites, deveria experimentar o início do mundo da descoberta e do conhecimento sem o “objetivo da promoção ou retenção”. Com tal prática experimental as crianças pequenas devem atuar como co-autores do trabalho, não só vistos como objetos, mas também como sujeitos em toda atividade pedagógica sendo estimuladas positivamente para criar coisas reais, com atividades manuais, e imaginárias, como falar do que está pensado, exporem seus universos psíquicos, enfim, devem atuar “como um sujeito participativo no jogo social” (idem).
Por outro, é importante mencionar que o trabalho na pré-escola se encontra inserido, conforme nos esclarece a LDB, em uma estrutura educativa que se inicia na creche e vai até o ensino superior. Ou seja, ele é parte integrante de um movimento, de um processo educacional, que deveria pressupor continuidades. Desta forma, suas características singulares, o trabalho não deveria como acontece normalmente ser isolado em si mesmo e sim participar relativamente, em relação, com o nível precedente e com o posterior. Isto garantiria uma “formação continuada” sem que houvesse quebras no processo.
Preocupados em compreender o significado da primeira fase do homem, pesquisadores brasileiros procuram olhar experiências de outrem em países que já há muito tempo pesquisam a atividade escolar infantil. E, como exemplo muito significativo de tal entendimento, é-nos apresentados trabalhos de pesquisadores italianos[1], agora objeto de análise no Brasil, que seria tomar os educadores como pensadores de sua própria prática, o que já acontecem em termos em algumas escolas de aplicação no país. Mais do que pensar sobre o outro, sobre o educando, no que diz respeito à pesquisa educacional seria importante em tal âmbito os próprios educadores à maneira de auto-avaliadores pensarem sobre si mesmos e nas atividades educacionais que têm sido colocadas em prática. O interessante da experiência diz Elisandra Girardelli Dogoi doutoranda na UNICAMP é ao invés de focalizar a criança, sem esquecer é claro de sua imprescindível importância, seria ater-se sobre os educandos e suas atividades não só vistos como objeto da pesquisa, sobretudo, como sujeitos que também se pesquisam, se auto-avaliam.
Assim, a pré-escola surge como fase preparatória imprescindível para o campo do conhecimento, o que há muito tempo tem sido observado pelo ensino privado no Brasil, mas que agora passa a estimular discussões em âmbito público.
JC.



[1] Foi publicado recentemente no Brasil pela UNICAMP um trabalho que fora executado nas pré-escolas da Cidade de Pistóia na Itália intitulado “Avaliando a pré-escola”. Esse trabalho tem sido tomado como referência para se pensar a experiência brasileira em tal fase escolar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

"CONSTRUÇÃO" (Chico Buarque)


 
 


Amou daquela vez como se fosse a úl___tima
   Beijou sua mulher como se fosse a úl___tima   E cada filho seu  como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tí___________mido
        
Subiu a construção como se fosse má___quina
   Ergueu no patamar quatro paredes só___lidas
   Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lá___________grima
        Sentou pra descansar como se fosse sá___bado
   Comeu feijão com arroz como se fosse um prín___cipe
   Bebeu e soluçou como se fosse um náu____frago
Dançou e gargalhou como se ouvisse mú___________sica
        E tropeçou no céu como se fosse um bê___bado
   E flutuou no ar como se fosse um pá___ssaro
   E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio pú___________blico
        Morreu na contramão atrapalhando o trá___fego
   Amou daquela vez como se fosse o úl___timo
   Beijou sua mulher como se fosse a ú___nica
   E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bê___________bado
        Subiu a construção como se fosse só___lido
   Ergueu no patamar quatro paredes má___gicas
   Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e trá___________fego
Sentou pra descansar como se fosse um prín___cipe
   Comeu feijão com arroz como se fosse o má___ximo
   Bebeu e soluçou como se fosse má____quina
Dançou e gargalhou como se fosse o pró___________ximo
        E tropeçou no céu como se ouvisse mú___sica
   E flutuou no ar como se fosse sá___bado
   E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio nau___________frago
   Morreu na contramão atrapalhando o pú___blico
   Amou daquela vez como se fosse má__quina
Beijou sua mulher como se fosse ló___gico
Ergueu no patamar quatro paredes flá______cidas
Sentou pra descansar como se fosse um pás__saro
E flutuou no ar como se fosse um prín_____cipe
E se acabou no chão feito um pacote bê___________bado
        Morreu na contramão atrapalhando o Sá___bado
         Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
         A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
         Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus      lhe                     pague
         Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
         Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
         Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus      lhe                     pague
         Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
         O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
         Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus      lhe                     pague
         Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
         Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
         Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus      lhe                     pague
         Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
         Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
         E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus      lhe                     pague
         Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
         E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
         E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus      lhe                     pague

Uma reflexão sobre a política educacional em tempos neoliberais.

É possível que ainda um dos grandes desafios da Política Educacional no Brasil seja a democratização de gestão e participação da sociedade na educação, bem como a real inserção coletiva daqueles que atuam pedagogicamente no processo educativo. Neste contexto, há uma necessidade de se pensar na adequação dos esforços que envolvem direta ou indiretamente, incluindo neles desde a lei regulamentada, passando pelos investimentos que lhe garante vida e, sobretudo, a prática pedagógica escolar às atividades reais que se desempenham na escola por colegiados, alunados e comunidade.
Em outras palavras, pelo que temos acompanhamos em autores, entre outros, como Palma, Soares, Bauman, Tavares, sobretudo Azanha ao propor uma revisão dos sentidos dos conceitos no universo educacional, como autonomia e democracia, há uma emergência de se criar condições que possam contribuir com a efetivação na prática do universo geral teórico da educação. Ou seja, aproximar tudo aquilo de caráter teórico, o regimento da lei, incluindo nele objetivos educacionais, prescrição pedagógica, estrutura escolar, fundos de investimento etc. à sua possibilidade real de prática.
Com isso, um dos grandes entraves que nos parece contribuir para a não aproximação é justamente os aspectos contraditórios que o separam ou desarranjadamente são acomodados pela união de uma prescrição que traz muitas vezes no seu interior a própria dificuldade de sua aplicação e efetivação. Isto é, a norma que estabelece participação democrática no processo educativo, mas que determina a relação de hierarquização entre os membros envolvidos. Assim, teríamos na teoria uma regulamentação que traz em si mesma a dificuldade real de sua aplicabilidade. Ou melhor, uma inadequação na teoria e entre ela e sua prática.
Por exemplo, em se tratando de política educacional em tempos contemporâneos marcada pela globalização há uma necessidade de tornar determinados setores mais eficientes, lógica essa do capital privado, mas que passa a ser atribuído ao público: “É da natureza do modo de produção capitalista, a incessante busca de novos processos tecnológicos que viabilizem o incremento da produção. Essa característica, aliás, tem garantido a sua longa sobrevivência (Ianni, 1995). Nos dias atuais, é nesse contexto que atua o estado capitalista (PALMA, UNIVEP, p. 2)”.
Como então adequar os preceitos do processo educativo que visa à inserção do alunado na sociedade por meio do conhecimento, da cultura a uma determinação preconcebida de “eficiência”? Neste processo inevitavelmente devem conter preceitos no novo modelo de educação para sua “utilidade” prática que tem por horizonte uma “eficiência” baseada na produção e mercado capitalista. O privado passa equivocadamente a determinar de antemão o público.
Outros problemas que decorrem dessa relação, ainda sob a concepção de eficiência, são as representações das concepções de “autonomia” e de “democracia” da gestão educacional. A primeira visaria a capacidade administrativa da escola e a capacidade intelectual dos membros envolvidos nela independentes da determinação direta das instâncias Federal, Estadual e Municipal, e a segunda visaria a participação coletiva do corpo escolar mais sociedade civil em todos os processos que envolvem a educação.
Nesta perspectiva, parece haver uma tentativa de adequá-las sob um “modelo” a partir do que se tem hoje da burocracia do setor público educacional, apontado muitas vezes como ineficiente, com as últimas teorias da administração empresarial. São visadas em tal situação duas lógicas que são marcadas por características bem distintas: a formação e a inserção do homem na sociedade através do conhecimento e da cultura, o que é difícil de ser medida, pois o cidadão não é avaliado pela sua quantidade de aspectos que denotem a cidadania, mas pela sua qualidade de “ser social”, o que já é muito amplo. E a “eficiência” do trabalho tendo por perspectiva o lucro que pode ser medido e que pode numa inversão lógica avaliativa aplicada a uma concepção de eficiência que revela ou não alta produtividade ou rendimento.
Nesse amálgama de bricolagens relutantes, podemos pensar rapidamente de uma outra maneira aquelas lógicas, pela estrutura administrativa de caráter público e privado, porque, em primeiro lugar, a escola também possui uma organização administrativa, e, em segundo, porque como vimos acima em Palma, em uma sociedade capitalista o Estado também passa a se estruturar sob a égide do capital; assim, a experiência administrativa do capital passa a determinar a pública.
O problema que observamos em tal cosimento é que há duas relações que são estabelecidas entre os membros de cada instância, pública e privada: se no Estado o que se visa segundo a legislação é a democracia do processo educacional, incluindo aí sua gestão, o mesmo é ilógico na produção do capital privado, pois as relações que se estabelecem nela estão sob a perspectiva da hierarquia, entre aqueles que detêm o poder e aqueles que não. Nela, no limite, há a possibilidade da participação sugestiva, mas não de decisão, votação. E mesmo neste caso muitas vezes seria uma sugestão requerida, permitida pelo superior imediato e não aquela que é pautada pelo comprometimento da iniciativa democrática. Haveria sim em ambos os casos uma autonomia intelectual, mas não haveria o espaço para a exposição espontaneamente dela que não fosse pelo caráter democrático-participativo.
Ao que parece é sob essa relação ou tentativa de adequação que as instâncias governamentais vêm tentando acomodar a Política Educacional de onde têm surgido vários problemas para sua efetivação. O que para muitos críticos tem demonstrado até agora não ser o melhor caminho.
Se o intuito atualmente é a participação e a democratização da educação, como poderia dar certo uma relação que se estabelece sob o modelo técnico-administrativo recomendado pelos órgãos mundiais de desenvolvimento usado no setor empresarial privado que visa uma eficiência quantitativa? Este parece ser um importante problema a resolver.
JC.

A Universidade no caminho capitalista: uma pequena reflexão sobre a condição da universidade atual sob a perspectiva de Barnett, Morin, Cunha e Sousa Santos.

Os textos dos autores que aqui nos interessam, dentro de suas complexidades, procuram tratar no geral do mesmo objeto: a universidade contemporânea em tempos complexos. Embora ambos tratem do mesmo corpus, ele aparecerá em suas obras de maneiras distintas.
Pensar em tal condição, apontam no geral,  seria questionar, sobretudo, os aspectos epistemológicos que uma reflexão desse tipo levaria em relação à constituição da universidade, sua estrutura física, sua constituição como meio de elaboração de conhecimento, seus aspectos científicos e sua relação com a sociedade. Como na atualidade vivemos momentos transformadores, ela necessitaria realizar uma auto-reflexão sobre seu caráter, pois se vivemos sob a emergência de um “novo sujeito”, mais técnico - as condições atuais capitalistas implicariam um novo estatuto de sujeito como objeto, como mercadoria - necessitaríamos de “outra ciência” constituída por aquele "novo sujeito", capaz de dar conta das novas necessidades. Desta forma, a Universidade como espaço por excelência de homens e mulheres do conhecimento deve levar em conta nesse “processo de revisão” a própria ciência que ela concebe.
Perece-nos que neste contexto, Barnett e Morin concordam expressamente que nos encontramos em uma “nova era”, a pós-modernidade, que revelaria uma complexidade inigualável em relação à anterior o que exigiria daquele espaço de conhecimento um trabalho mais árduo em dar conta dessas novas condições. Para o primeiro, essa capacidade de corresponder às necessidades está ligada a uma ideia de “radicalidade”, um mundo “super-complexo” da “incerteza”, que exigiria uma atuação com o mesmo peso: “liderar tal incerteza” (p. 183). Isto visaria desmistificar o incerto como um "mundo impossível de se viver" pois essa condição já é superada na realidade. Para ele já habitamos nessa complexidade e de certa forma já temos conhecimento de como ela pode ser tratada, cabendo dar-lhe nossa cota de complexibilidade: 

A través de sus propios productos de conocimiento, de una diversidad extraordinariamente rica, la universidad ha contribuido, ciertamente, a crear um mundo incierto. Ahora, esse mismo mundo Le pide que contribuya a encontrar el camino en médio de uma incertitumbre radical” (p. 190-191, 2002).
                
            Aceitando o mesmo paradigma de que já nos encontramos em uma "nova era", Morin também defenderá a sensibilidade por parte da universidade a essa complexidade incerta que assola a sociedade, reflexo de um momento histórico "novo" inaugurado pelo capitalismo. Mas ao contrário da defesa de Barnett no trato dessas novas condições, Edgar Morin defenderá que o campo do conhecimento deve enxergar tal incerteza não de forma radical: “(...) é preciso pensar com e na incerteza, mas não a incerteza absoluta, porque sempre navegamos num oceano de incertezas por meio de arquipélagos de certezas locais” (p. 35, 2002). Ou seja, a incerteza absoluta para ele seria própria do caos  em que vivemos, pelos “arquipélagos de certezas” ou de imposições de pontos de vistas, portanto, precisamos pensar e dar sentido a esse caos para revertê-lo de uma neurose histórica a ideias libertárias e não prisioneiras. A universidade seria esse local de onde surgiriam possíveis abertura para este conhecimento complexo.
            No caso de Maria Isabel da Cunha, em conjunto com Sousa Santos, vivemos também em momentos de extrema complexidade, mas ao contrário dos anteriores, não deixam claro que essa condição seja reflexo de "nova era". Eles defendem que vivemos momentos de noeliberalismo que implica a toda sociedade desregulações e regulações ideológicas que dão sustentabilidade às suas concepções:

O Estado-Avaliador, entretanto, vem reforçando o pilar da regulação, reinstituindo o processo de relações colonialistas na relação sujeito-objeto. Essa perspectiva foi particularmente enfatizada resignificada pela chamada globalização, dentro da tendência neoliberal, que fortemente vem impondo-se como se fosse uma única alternativa de desenvolvimento, especialmente para os países dependentes (CUNHA, p. 15-16, 2006).
           
            Essas atuações do Estado neoliberal incidem mais fortemente como podemos verificar em países periféricos fazendo com que o conhecimento que é produzido nas Universidades dessas regiões permaneça dependente de um centro emanador formado por Europa e Estados Unidos. Assim, os autores reconhecem que isso faz parte de um problema de alcance global, mas que nesse reconhecimento cabe enfatizar que há uma diferença entre os países “centrais” e os “marginais” o que revela uma questão regional a ser resolvida na qual “o pensamento moderno ocidental é um "pensamento abissal" (uma linha invisível que torna inexistente tudo o que existe para o outro lado da linha)” (SANTOS). Tal caracterização aponta para uma emergência de autonomia daquelas formas de pensamento do outro lado da linha esférica global.
            Assim, todos os autores aceitariam a ideia de que a Universidade pela influência que causa na sociedade seria o local adequado no qual espelharia o “pandemónium” da sociedade, sendo ela parte constitutiva dela em meio a essa condição urgente de compreensão e atuação deste “estado caótico”. Tal atuação viria, sobretudo, através uma "outra forma" de se "fazer conhecimento" ligado à colaboração ou "solidariedade" não só entre as disciplinas, mas principalmente entre professor e aluno. Haveria assim uma outra relação entre os sujeitos e seus objetos de conhecimento; uma categoria "nova" de "entes" a qual se daria pela relação: um "ser" que não se encontra mais em si, mas na relação com o "outro".
JC.

Bibliografia: BARNETT, R. Claves para entender la universidad em uma era de supercomplejidad; CUNHA, Maria Isabel da. Pedagogia Universitária: Energias emancipatórias em tempos neoliberais; MORIN, Edgar. A Reforma Universitária e SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento Abissal.