sábado, 6 de novembro de 2010

"Modus operandis" em História: uma reflexão sobre possibilidades de práticas de pesquisa.

Um trabalho de pesquisa parece implicar uma reflexão a priori sobre suas possibilidades, uma reflexão durante sua execução, pensar sobre o trabalho que tem sido feito, e uma reflexão a posteriori, sobre os resultados obtidos. Isto quer dizer que todo seu desenvolvimento, inserido nele o projeto a ser executado, sua execução e seu resultado nos exige um olhar que não deve somente ser direcionado para o objeto que é base dela, mas também, como nos alerta Certeau (- com seu metafórico espelho), um olhar sobre nós mesmos como pesquisadores, o “espaço que ocupamos” enquanto tal e nossa prática. Em outras palavras, faz-se importante pensar no modus operandis que nos “faz ser” aquilo que almejamos para realizar um projeto. Assim sendo, tão importante quanto pensar de imediato o objeto, produto de verificação, seria também refletir em quais possibilidades de tratamento sobre o qual podemos aplicá-lo, iniciando tal aplicabilidade, parece-nos importante, em nós mesmos, pesquisadores de uma área determinada, com procedimentos determinados, objetos determinados. Isto significa que todo processo de pesquisa exigiria de seu pesquisador clarificar o “campo de guerra” que se propõe adentrar e o comportamento “adequado” para explorá-lo da maneira mais proveitosa. Uma espécie de estratégia de ação.
Propomos aqui discutir sucintamente a importância do modus operandis da pesquisa que pode antes mesmo de se colocar em prática vir a determinar seu trabalho e clarificar seu operador. Refletir sobre suas possibilidades e sobre uma espécie de “eu pesquisador” que possui características e comportamento, ou seja, uma espécie de “eu situado”, historiador, que está atrelado a um objeto. Um “sujeito intelectual” precavido que tem por grande receio se perder em um tipo de “esquizofrenia teórica e metodológica”, em virtude da complexidade de aspectos que se apresentam ao campo da pesquisa, e que, portanto, se vê comprometido com essa determinação de si pelo pensamento teórico-metodológico e de seu trabalho.
A pesquisa tem há algum tempo se transformado de certa forma quase que em um “drama” para alguns pesquisadores e isto não quer dizer que no passado mais distante ela vivia situações amenas, mas o que se percebe é que seu momento atual é singular. Isto se inicia a partir do pós-guerra quando o campo das Ciências Humanas se vê diante de um turbilhão de contestações teóricas, metodológicas, políticas, culturais, econômicas etc., em parte lançada pela Escola dos Annales. A ideologia dominante naquele período que polarizava o universo do campo do conhecimento em de um lado o pensamento de esquerda e do outro o de direita como avaliador do campo social em geral enfrentou uma crítica rigorosa, embora tal polarização ainda exista de certa maneira. O que se verifica na atualidade é que aquele universo é muito mais amplo, isto em relação a todas as ciências e sobretudo às humanas, e mais especificamente, aqui o que nos interessa, à História: “Mais ou menos na última geração, o universo dos historiadores se expandiu a uma velocidade vertiginosa” (BURKE, P. ABERTURA: A NOVA HISTÓRIA, SEU PASSADO E SEU FUTURO. In A ESCRITA DA HISTÓRIA. São Paulo: UNESP, tradução de Magda Lopes, 1992, p. 7).
Tal amplidão reorganizaria os trabalhos de pesquisa em história levando-a a um “necessário” remanejamento em que suas divisões ou determinações surgiriam fatalmente relacionadas ao “objeto” ou “produto” visado. Travou-se uma procura epistemológica geral por determinações, categorias, especificações, gêneros etc.:
A história nacional, dominante no século dezenove, atualmente tem de competir como historia mundial e a história regional (antes deixada a cargo de “antiquários” amadores para conseguir atenção. Há muitos campos novos, freqüentemente patrocinados por publicações especializadas. A história social, por exemplo, tornou-se independente da história econômica apenas para se fragmentar, como alguma nova nação, em demografia histórica, história do trabalho, história urbana, história rural e assim por diante (idem, ps. 7-8).

Assim, fazendo uso da metáfora de Koyré, de um mundo de certo modo fechado, cerrado entre aquelas duas polarizações, surgiria com sua “implosão” um universo infinito de possibilidades. Uma nova condição que revela uma contraditória “crise” de fato que leva a uma revigorarização, uma crescente retomada do trabalho de pesquisa em história: “Entretanto, o preço de tal expansão é uma espécie de crise de identidade (idem)”. Uma busca pelo reconhecimento e definição; estava aberta a chamada Nova Histoire que entre muitas qualidades se atribuiria o direito da “interdisciplinariedade”, ou melhor, do cotejamento entre campos de saberes e consequentemente da complexidade.
Entre parênteses. No caso da educação ou da história da educação não poderia ser diferente. O campo que nascia com a nova história reclamaria mais espaço entre as chamadas história social, história cultural, história dos costumes e por aí a fora. E nessa expansão não faltariam pesquisas para compreender o universo educativo, formação de professores (NÓVOA), material didático (CHARTIER, CHOPPIN, BICCAS), a identidade dos educadores e dos educandos (DEWEY), os espaços educativos, a relação educativa (CARVALHO, Marta), ou mesmo as contestações, “o que é educação”, quais seus “espaços”, “quem educa quem” (ABRAMOVICH), “professores para quê? (GUSDORF) e por aí em diante. Enfim, a educação não sairia ilesa dessa infinitude que se apresentaria à pesquisa.
Complexidades e possibilidades infinitas à vista exigiriam certos cuidados. Burke em sua obra A ESCRITA DA HISTÓRIA (1992) alertaria sobre o problema de tal expansão: “Neste universo que se expande e se fragmenta, há uma necessidade crescente de orientação” (idem, p. 9). Uma expansão que requeriria todo cuidado por parte do pesquisador em meio à multiplicidade de opções. Nessa atenção redobrada para a qual surgem metaforicamente instigantes e torturantes “objetos de desejos”, especificamente, objetos de pesquisa, métodos, práticas, teorias, poderiam entrar em xeque por meio de um descuido o valor e a função do pesquisador e de seu trabalho por isso a busca pela “orientação”, pelos sentidos, significações ( - o  que é pesquisa, o que é um pesquisador, que sujeito sou e quem devo ser diante de meu objeto a ser verificado, que método se deve privilegiar, como se pode observar, refletir, reunir, separar os aspectos de um trabalho de estudo, isto é, quais alternativas e quais critérios de seleção se deve dar atenção). Em resumo, quais as especificidades do modus operandis mais adequado a ser utilizado.
Todas essas preocupações parecem fazer parte do processo das práticas de pesquisa. Este foi de um modo ou de outro um tema muito recorrente na disciplina História da Educação e Historiografia[1] (1º semestre de 2010) ministrada pela professora Maurilane Biccas. É possível verificar sua latente preocupação com as práticas desenvolvidas pelos pesquisadores. E neste sentido, seria interessante pensar um pouco sobre esse “universo”, que se apresenta às vezes turbulento, situado em parte à minha pessoal preocupação de pesquisador utilizando parte da bibliografia discutida durante o curso. Conjunto de textos que entre outros assuntos tratava de alguns pontos e problemas da pesquisa em história e historiografia, como, por exemplo, a prática historiográfica (Certeau, Vidal, Carvalho, Biccas), determinações da história e do trabalho historiográfico (Burke), o objeto de pesquisa (Chartier, Certeau, Choppin), o historiador (de relance Bloch), métodos historiográficos (Choppin, Burke).
Deste modo, tendo por base aquelas preocupações, parece necessário discutir o significado de certas concepções, como, pesquisador, objeto de pesquisa e método, acerca de tais práticas que compreendemos ser o princípio da realização de um projeto, algumas vezes remetendo à experiência particular que venho desempenhando no intuito de “orientar”, conforme Burke, um meio operatório para o trabalho em história e historiografia.

Pesquisador
Cabe-nos então nos perguntar de saída o que é um pesquisador? Não no sentido de encontrar respostas determinantes sobre tal posicionamento, mas traçar algumas observações gerais que possam nos levar a enxergar no horizonte uma imagem que nos servirá para clarificá-lo. Certamente Michel de Certeau seria um importante pensador a nos dar alguns sinais de tal entendimento:

Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa entendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação. Esta marca é indelével. No discurso onde enceno as questões globais, ela terá a forma do idiotismo: meu patoá representa minha relação com um lugar (CERTEAU, M. A Operação Historiográfica. In A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, s.d., Capit. II, tradução de Maria de Lourdes Menezes, p. 65).

Para Certeau o “ofício” de um pesquisador independente do campo de atuação inicia por “ocupar um lugar”. Um “espaço ocupado” de onde se fala, um “mirante” em meio ao próprio universo de fala, ou seja, um lugar de onde se observa sendo que tal lugar também já é considerado na observação. Um meio de onde o sujeito fita o além e também se fita neste ato mirador, como, em uma tarde de verão ao observar de Montmartre a Paris ao sopé, sendo que a própria região mirante faz parte da própria cidade revelando uma relação do observador com o lugar, com o lugar que se observa de longe e com o lugar a partir do qual é ocupado para observar. Uma relação estreita entre o sujeito e o espaço que ocupa e o objeto observado.
Desta forma, ocupar um lugar é ao mesmo tempo determiná-lo como parte do sujeito e determinar este como ocupante daquele por meio da relação estabelecida entre ambos. Uma determinação que se revela através de sua materialização, por definições de aspectos que envolvem a pesquisa: o pesquisador, sua “ciência”, seu material, método etc.
Em outras palavras, em relação à nossa discussão, sou “ocupante” de um espaço qualificado e isto já é uma determinação de mim como historiador em um lugar, com minhas experiências adquiridas; tal “ocupação” é demarcada por mim e por aquilo que “carrego”, tanto em relação às experiências particulares quanto às gerais. Ou melhor, tanto minhas experiências de sujeito singular, com minha história social privada, quanto minhas experiências mais genéricas, como, por exemplo, minha formação intelectual em história e filosofia. Dessa combinação eu me situo em um “contexto sócio-cultural”, demarcado em parte pelo meu ofício de historiador.
Tudo isto contribui com o acabamento do “sujeito situado” que sou ou que pretendo ser para realizar um projeto. E esse conjunto se manifesta nas ideias que carrego, eu sujeito que pesquisa no campo da história com operações adequadas relacionadas a tal qualidade, e as quais utilizo para exercer uma prática intelectual: “(...) o gesto que liga as “idéias” aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador com um lugar” (idem).
Tal “gesto” é um movimento, ou seja, uma “ação”, ou “operação”. Assim, minha ação precisa revelar as características da determinação: se pesquisador em história, a prática deve revelar suas características. E esta, como nos aponta Certeau, é “uma operação histórica” que se combina com “um lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita” (idem). Este parece ser o tripé de que se serve o teórico francês para pensar o “ofício”. Um sujeito intelectual, pesquisador de história que deve carregar consigo um discurso teórico, metodológico, em outras palavras, “operatório”, que revele uma prática de “ofício”.
Parece que nesse ínterim tal pesquisador deve pensar seu objeto de trabalho e pensar como está pensando-o, se de modo “adequado”; operá-lo e refletir sobre o “ato de operar” que está sendo utilizado para saber se ele é reconhecível, ao menos para aquele que o constrói[2].
É possível verificar com isto que um pesquisador parece ser aquele que carrega consigo uma “qualidade” que será aplicada nele mesmo e no seu produto de trabalho, no objeto a ser pesquisado.
Do sujeito que opera ao objeto operado o pesquisador deve levar em consideração tanto sua prática quanto o produto com o qual irá trabalhar. Assim sendo, é imprescindível nesta reflexão que temos desenvolvido fazer algumas indagações sobre a consistência deste “material”.

Objeto de pesquisa
O que se poderia tomar como objeto de pesquisa? Que qualidades poderíamos atribuí-lo? Em outras palavras, como determiná-lo? Sem querer restringi-lo a uma concepção puramente objetiva, traçaremos algumas observações acerca das possibilidades daquilo que se denomina de “objeto de pesquisa” em história.
Como vimos acima, muita coisa se modificou no campo da pesquisa ao longo dos anos a partir do pós-guerra. Mas nos parece que algumas mudanças já estavam em andamento já desde o final do século XIX pelas mãos ou ideias de historiadores como Burckhardt e Huizinga ao tratar até então do “incomum”, dos “aspectos culturais do comportamento humano”, na “operação histórica” em oposição à tradicional história do Estado ou Diplomática.
Tal modo de tratar os “fatos históricos” se expandiria com a contribuição na sequência, na virada do século, de Lebfevre e Marc Bloch[3] com suas pesquisas no campo sócio-cultural. Ambos lançariam mão da emergência de se pensar a história de outro modo. E é a partir da perspectiva deste último, com sua tese de que a história se faz através dos “vestígios” ou “fragmentos” por meio dos “testemunhos” que pretendemos iniciar nossa discussão, pensar nosso objeto.
Parece que para Bloch o passado só é “produto” para a historiografia por meio dos testemunhos, ou seja, dos fragmentos relatados:
Das eras que nos precederam, só poderíamos [portanto] falar segundo testemunhas. Estamos a esse respeito, na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu; do físico, que, retido no quarto pela gripe, só conhecesse os resultados de suas experiências graças ao relatório de um funcionário de laboratório. Em suma, em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente o “indireto” (BLOCH, M. A Observação Histórica. In Apologia da História. Rio de Janeiro: Zahae, 2001, Capítulo II, p. 69).

Essa relação “indireta” do historiador com seu objeto de trabalho, o fato no passado, ocorre porque há um distanciamento entre ele e o ocorrido. Ele não viveu diretamente aquilo que procura saber que só o tem acesso por intermédio de outrem, pelos relatos que o são apresentados como “fragmentos” para a formação de um todo. E isto valeria também para o tempo vivido que por sua complexidade de apreensão impossibilitaria a um só abarcar as várias situações presenciadas:
Um comandante de exército, suponhamos, acaba de obter uma vitória. Imediatamente, começa, de punho próprio , a escrever seu relato. Concebeu o plano de batalha. Dirigiu-a. Graças à medíocre extensão do terreno [(pois decididos a colocar todos os ornatos em nosso jogo, imaginamos um confronto dos tempos antigos, concentrado num espaço pequeno)], ele pôde ver a refrega quase toda a se desenrolar sobre seus olhos. Entretanto, não duvidemos: sobre mais de um episódio essencial lhe será forçoso referir-se aos relatórios de seus tenentes (idem).

E por mais que o espaço pareça pequeno, ou seja, que o objeto contenha alguma simplicidade, dentro dessa aparente “pequenez” há uma complexibilidade que exige a contribuição de muitos.
Muito similar à ideia de François Dosse, a história se faria através das “migalhas”, dos fragmentos por meio de relatos, quer seja oral, quer seja verbal, quer seja documental; enfim, um “vestígio” em forma de significação deixado em algum momento no passado que é retomado no presente para adquirir “sentido”, “(...) são realidades que nós próprios (historiadores) captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal” (idem, p. 72). Desta forma, o dado que passou, que é captado por meio de fragmentos para a formação de algo que tem “sentido”, é reorganizado através de um trabalho transformador: “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (idem, p. 75).
Isto parece nos remeter à tese de Michel de Certeau a qual, em relação ao passado que é retomado e “transformado” e que ao se realizar já se torna também outro passado e “produto” para outro presente, trata sobre a retomada do “morto”, o fato consumado, que é transformado em “vivo”, para morrer quando tiver cumprido sua trajetória, isto é, quando tiver já sido pensado no presente.
A história como “produto” seria aquilo que já está morto, pelo tempo e pela sua própria trajetória existencial: “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente” (VIDAL, Diana G. MICHEL DE CERTEAU E A DIFÍCIAL ARTE DE SE FAZER HISTÓRIA DAS PRÁTICAS. In Pensadores Sociais e História da Educação. S.C.: Autêntica. Organização FARIA filho, Luciano M. de. S.d., pg. 257).
Esta discussão nos leva consequentemente a citar Burke e seu conceito de “cultura material”, sobretudo se pensarmos nas correspondências produzidas por sujeitos, que alias é objeto de nossa pesquisa de pós-graduação, que seriam espécie de vestígios “mortos” deixados pelos homens nas quais são gravadas suas impressões e significados referentes às suas vidas privadas, mas que podem se relacionar ou se inserirem em um contexto maior.
Os sujeitos ao produzirem algo no presente que se “torna morto” logo em seguida deixam sinais de sua presença, quer sejam nos objetos, quer sejam nos espaços; gravam suas marcas por meio de significados tornando-os “produtos historiográficos”, isto é, de uso para a historiografia. E no caso das missivas, elas possuem em potencialidade “fragmentos de histórias” ou “vestígios do vivido” que está morto de um período já acabado, porém com potencialidades para o “reavivamento”. Elas auxiliam mesmo em sua aparente “pequenez”, “migalhas”, a dar sentidos, preencher lacunas, de um tempo obscuro visto que trazem em si revelações de um espaço “invisível”, do universo privado, mas que podem contribuir com a compreensão do visível, do público, de um tempo que está lá atrás, mas que no presente está ainda por revelar, revelar novas “situações” que nos ajuda a compreendê-lo bem como seu passado.
Em outras palavras, as missivas, pensando nas que vêm sendo retomadas por mim sob a perspectiva pedagógica caiopradiana de caráter político, auxiliam-nos a compreender no presente que a educação pode se realizar através de varias vias, como, por exemplo, pela correspondência, e também nos faz compreender as articulações político-educativas de um passado ideológico brasileiro, em meio a um conflito político.

Método
Outro ponto importante do modus operandis seria o meio pelo qual se realiza a pesquisa, ou seja, métodos, os quais possibilitam seu manejamento completo desde o estabelecimento de sua proposta até sua finalização. Já nos alertava indiretamente Burke em sua obra O que é História da Cultura? (2005) a importância dos sinais e códigos deixados pelos pesquisadores do caminho por eles percorridos. Uma determinação daquilo que estava sendo executado à maneira de um “discurso próprio”. O que de certa forma ele também o faz naquela obra, percorre o caminho deixado pelos historiadores da cultura e ao mesmo tempo vai sinalizando para seus leitores que o que ele faz é uma “história da história da cultura”. Seria como dar uma identidade aquilo que se produz. Diz ele através das palavras de Sartre: “(...) embora a história cultural não tenha essência ela possui uma história própria” (BURKE, 2005, p. 10). É possível que essa contraditoriedade, da “falta” de essência já fosse explicada pela própria existência de sua história. É possível que sua essência fosse justamente seu caráter histórico, sobre tudo aquilo que pudesse de alguma forma possuir “sentido” pelas mãos do homem e passível de ser “historicisado”.
Desta forma, parece-nos que o método já se inicia pelas próprias escolhas dos sinais que se quer deixar propositalmente para sinalizar que o que se está fazendo é história e não outra ciência. E mais, uma história específica, determinada, se econômica, se cultural e que tipo de cultura, se social e qual aspecto dele, se educacional e sobre qual de suas partes. Isto nos remete a Certeau e sua concepção de “demarcação de espaço”, tratada linhas acima, do lugar de onde se fala e sobre qual se fala. Neste aspecto, o método parece se relacionar diretamente ao sujeito e ao objeto com o qual ele trabalha através do movimento de demarcação do campo de atuação pelo pesquisador ou como ele defendia, do “espaço”.
Essa concepção de método parece ser no geral “práticas” para desenvolver aquilo que existe enquanto proposta de um projeto sendo que esta de saída já passa pelo crivo daquela. Uma espécie de “transformação” do outro e de si, ou como diz Certeau uma “técnica” que tem a capacidade de “transformar”, dar um “novo sentido”. Esse deslocamento contribuiria com o estatuto de cientificidade do trabalho histórico: “”Um trabalho é “científico” quando opera uma redistribuição do espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo estabelecimento das fontes” – quer dizer por uma ação instauradora e por técnicas transformadoras” (idem, p. 83). A metodologia pela sua habilidade prática se enquadraria nessa cientificidade que é “objetiva”, determinações que organizam, separam, aproximam.
E aqui é possível, a titulo de ensaio como ilustração, pensar em um esquema, modo de trabalho ou método prático, em parte relacionado à pesquisa que tenho desenvolvido sobre as correspondências de cunho educativo de Caio Prado Jr. O intuito é apenas sinalizar para possibilidades para poder visualizar o que nelas podem viabilizar a prática, aplicação de um método a um “produto”. De outra forma, como até o momento fizemos uso de formulações teóricas para pensar uma concepção de modus operandis, acreditamos neste ínterim ser importante uma aproximação sua em relação às formulações mais práticas.
Neste intento parece importante organizar o “campo de batalha”, (o qual citamos no início desta reflexão) o espaço histórico em atuaremos para “visualizá-lo”. E para isto cabe uma espécie de “plano de ação”, propostas que pretendem se não serem postas totalmente em execução ao menos pontos de partida para os quais sugerimos práticas de caracteres analíticos e analógicos (análises e analogias). Apresentamos em seguida a organização de tais pontos, no intuito de demonstrar a possibilitar de um “discurso específico”, em história e historiografia da educação.
A proposta do plano é dividido em duas partes:
1ª) Questões de orientação geral: usos conceituais para delimitação da pesquisa, através da qual se pretende demarcar um campo de discussão, no caso, história e historiografia da educação por intermédio de obras de história e sociologia da cultura e da educação.
►BURKE: conceito de “cultura material” – historiografia da educação através de cartas.
►CERTEAU: conceito de “vivo do morto” – escavar a história – e “táticas sociais” – as cartas como “subversão da ordem política autoritária vigente no período ou o “drible” do Estado autoritário de censura no Brasil para discutir questões sociais.
►BLOCH: o “invisível por trás do visível” – as cartas como “ação” ou articulação do universo privado, atividade “não-não visível” que pode escapar ao ato de censura, perseguição política, para contestar a ordem capitalista vigente por meio da educação dos conceitos marxistas.
►BOURDIEU: conceito de “campus”: o espaço de discussão e educação criado pela troca de correspondência que tinha por finalidade transmitir, instruir, dialogar sobre questões político-marxistas.

E 2ª) Questões de orientação especifica – visão sobre o material da pesquisa, as correspondências. Possíveis apropriações e direções de pesquisa no manuseio do material pela adaptação do “método funcional” de Alain Choppin (usado por ele para organizar sua leitura do material didático na França) no intuito de dar um “sentido” ao produto com qual venho trabalhando. Isto é, retomando Certeau, acomodando-o em um “espaço” que nos parece conter aspectos novos dos até então tratados.
►Função referencial: suportes de ideias “político-educativas” de caráter marxista.
►Função instrumental: divulgação e esclarecimentos de diálogos de cunho marxista, veículo de contato político e político-educativo.
►Função ideológica e cultural: transmissão de ideais e conceitos marxistas.
►Função documental: mapeamento (entre as décadas de 1930 e 1960) do contexto educativo caiopradiano sensível aos âmbitos histórico, social e cultural de caracteres marxistas no Brasil.

Como podemos verificar é muito complexo o universo da pesquisa. Pode ser uma via com direções de caminhos certeiros, mas que também pode conter entroncamentos, curvas, caminhos que levam ao nada, que findam sem aviso prévio, e circular como uma rotatória que nos faz girar sem chegar ao começo ou ao fim.
Ou seja, uma multiplicidade de opções que nos aparecem, muitas vezes nos cortejam, nos conquistam e nos iludem como que em uma sala de espelhos que entre os perfeitos e os imperfeitos nos fazem ver aquilo que, ou existe apenas espelhado nele, uma figura disforme do real, ou o espelhamento de uma imagem do real. Imagens variadas que nos confundem nas escolhas e que num instante quase que de “neurose” nos faz vacilar. Neste caso, ela pode se tornar o grande receio de qualquer pesquisador: não concluir aquilo que se propôs, embora qualquer conclusão seja momentânea.
Parece-nos que uma boa alternativa à “segurança” ainda seja pensar o objeto e pensar como está pensando-o. Um olhar mirador que fita e se fita como a relação de Certeau e seu metafórico “espelho”.



Referência bibliográfica
BLOCH, M. APOLOGIA DA HISTÓRIA. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, Tradução: André Telles.
BURKE, P. A ESCOLA DOS ANNALES. São Paulo: UNESP, 1997, Tradução: Nilo Odalia.
Idem. O QUE É HISTÓRIA CULTURAL? Rio de Janeiro: Zahar, 2008, Tradução: Sergio Góes de Paulo, 2ª. Edição.
Idem. A ESCRITA DA HISTÓRIA, Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, Tradução: Magda Lopes.
CERTEAU, M. A ESCRITA DA HISTÓRIA. Rio de Janeiro: FORENSE, s.d., Tradução: Maria de Lourdes Menezes.

Bibliografia
ABRAMOVICH, F. QUEM EDUCA QUEM? São Paulo: Circulo do livro, 1985.
BICCAS, Maurilane de S. O impresso como estratégia de formação: Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: ARGUMENTUM, 2008.
BOURDIEU, P. A DISTINÇÃO. São Paulo: Zouk e EDUSP, 2008.
CHARTIER. R. A ORDEM DOS LIVROS. Brasília: UNB, s.d., Tradução: Mary Del Priore.
CHOPPIN, A. História do livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In Revista Educação e Pesquisa. São Paulo: EDUSP, v. 30, nº 3, set./dez. 2004.
DOSSE, F. A HISTÓRIA EM MIGALHAS. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, 2ª impressão, Tradução: Dulce A. Silva Ramos.
GALVÃO, Ana Maria de O. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte: Autêntica. 2001.


JC

[1] Monografia escrita para a conclusão da disciplina de pósgraduação História da Educação e Historiografia, monistrada pela Profª Maurilane Biccas, FE-USP, 2010.
[2] Como verificamos em nosso curso, recorrendo a CHARTIER em seu texto Práticas da Leitura (1996), o autor de um discurso implica em seu texto uma determinação, uma organização singular, mas que não se realiza totalmente à medida que sua apropriação pelo leitor implicarão outras demarcações, sem falar na interferência do próprio processo de editoração da obra. Isto não significa que mesmo sob essas condições o autor não esteja agindo conscientemente para construir um caminho que será recomendado aos leitores, um caminho que faça com que eles o reconheça como produtor do trabalho.
[3] Sobre o assunto ver BURKE, P. O que é História Cultural? São Paulo: Zahar, 2005.